Metas a serem batidas a todo e qualquer custo, pressão por entrega de resultados, estresse como demonstrativo de comprometimento, horas extras como sinal de dedicação. E, no final, a falta de reconhecimento do chefe. Parece uma descrição do que um ambiente corporativo nunca deveria ser. Mas, infelizmente, descreve a realidade do que ele foi por muitos anos — e ainda é — em muitas empresas brasileiras. E uma das consequências mais graves foi o diagnóstico frequente nos últimos anos de qualquer funcionário com uma síndrome que vai além do estresse, depressão e ansiedade — e que, na verdade, pode unir tudo isso. Trata-se do burnout, o esgotamento profissional profundo. Ele pode se refletir em vários aspectos da vida pessoal, levar a doenças sérias, como desenvolvimento de tumores, e até ao suicídio.
Causado por fatores hostis no ambiente corporativo e também pela alta expectativa que o profissional deposita no trabalho, o burnout vem sendo estudado com maior assiduidade pela ciência desde os anos 90. Pesquisadores espanhóis conseguiram, nos anos 2000, mapear subtipos da síndrome, o que facilitou o diagnóstico, bem como o tratamento.
É preciso ainda, porém, ensinar empresas a lidarem com o burnout. E essa é uma das missões diárias de Ricardo Monezi, doutor, professor e especialista em medicina do comportamento na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Além de se dedicar ao tema dentro da academia, Monezi dá consultoria a grandes empresas para ajudá-las a colocar como prioridade a qualidade de vida e bem-estar dos funcionários. E, assim, prevenir o burnout.
A boa notícia, diz ele, é que elas já estão cientes de que o estresse não é sinônimo de trabalho e alta produção. “As empresas demoraram, mas perceberam que não é possível ter produtividade com qualidade em um ambiente que está contaminado, doente e envenenado pela ambição”, diz. É por isso que Monezi defende que “a era do ´funcionário bom é funcionário estressado` está acabando”, assim como a história de que “funcionário sem estresse não vestiu a camisa”. “É uma tendência não só no Brasil, mas no mundo.” Em entrevista à Época NEGÓCIOS, o especialista fala sobre as causas do burnout, como é possível combatê-lo, diagnosticá-lo e evitá-lo:
O que é burnout?
É uma síndrome de esgotamento profissional, de que o estresse intenso faz parte. Designa um processo interno de degradação muito forte, que é gerado principalmente pelas condições laborais a que os trabalhadores estão submetidos. Os sintomas mais comuns de quem está em estado de burnout são a ansiedade, a depressão, a fadiga, o absenteísmo [faltas constantes] e a queda de produtividade. O desenvolvimento do burnout varia em relação à profissão, ao país e aos pontos de corte que aplicamos para seu diagnóstico. Estudos da década de 2000 relatam que, principalmente, os trabalhadores da área de saúde e aqueles que trabalham em empresas multinacionais sofrem carga de burnout muito extensas, por causa das demandas e da pressão por resultados.
De que forma o burnout se diferencia de um quadro de estresse profundo e persistente?
A pessoa que sofre de burnout passa por desgaste extremamente alto que vai muito além de todos os sintomas clássicos de estresse e que está associado às questões típicas que atacam as empresas. O indivíduo em burnout começa a se sobrecarregar com demandas de trabalho sem, contudo, levá-las a termo [concluí-las]. Geralmente, as pessoas em estado de burnout ficam indiferentes, chateadas e desmotivadas. Começam a apresentar quadro crônico de uma inatividade em relação às questões profissionais, um sentimento de falta de controle sobre resultados do trabalho. Demonstram, muitas vezes, revolta ou até depressão devido a sentimentos de injustiças que acreditam ter no trabalho, ou por uma falta de reconhecimento de seus próprios esforços. Isso tudo as leva a abandonar responsabilidades e até a não quererem adquirir outras demandas. E é importante citar que, muitas vezes, o burnout não ataca apenas indivíduos de maneira isolada, mas existem empresas, organizações inteiras, que podem exibir uma síndrome de burnout generalizada. Isso se manifesta quando vemos ciclos muito grandes de acidentes nos campos e nas plantas de fábricas.
Por que estamos falando tanto de burnout nos últimos anos? O número de diagnósticos aumentou ou a medicina evoluiu para conseguiu diagnosticar mais pessoas?
Da mesma maneira que muita gente no passado acabava adoecendo por não ter diagnósticos precisos, hoje já podemos dizer que a síndrome do burnout está muito bem conceituada e desenhada. Ela já começa a figurar em manuais de critérios diagnósticos e de estatísticas de síndromes mentais. Temos cada vez mais equipes de medicina e psicologia de trabalho instrumentalizadas para identificar rapidamente o aparecimento dos primeiros sintomas. E temos ferramentas para fazer diagnósticos mais refinados, como definir o subtipo clínico da síndrome. Esses subtipos foram traçados por um grupo de pesquisadores, liderados por Javier García-Campayo, em 2010. O primeiro deles é o chamado “frenético”, que engloba pessoas extremamente ambiciosas que querem pegar todo o trabalho para si e cumprir todas as demandas mesmo sem ter competências para tal; o segundo é o “sem-desafios”, que abarca os sujeitos que se tornam indiferentes, aborrecidos com sua atividade e cujo trabalho precisa ser refeito pelos colegas; e há o terceiro subtipo, o “desgastado”. É um dos que mais sofre. São aquelas pessoas que apresentam sentimentos de culpa, perda de autocompaixão, nervosismo, ansiedade extrema, com grande sentimento de revolta e frustração. Não se sentem reconhecidos e pensam ser injustiçados. Vão gradualmente abandonando suas responsabilidades e se entregando a quadros como depressão e ansiedade.
Todos os subtipos da síndrome de burnout estão, portanto, relacionados ao trabalho?
Sim. Sabemos atualmente, por diversos tipos de pesquisas, que a qualidade de vida pessoal reflete diretamente e de maneira proporcional a qualidade de vida no trabalho. E vice-versa. Um trabalhador feliz vai feliz para casa. Agora um funcionário estressado e em processo de desgaste geralmente não vai deixar todos esses aspectos somente no ambiente de trabalho. Ele carrega algo consigo para dentro do lar e o esgotamento profissional pode gerar estresse na vida social, e fazer com que essa pessoa falte aos compromissos de sua vida, não cuide de sua saúde.
Em todos o caso, o desenvolvimento do burnout começa de forma sutil, com sintomas leves?
Exatamente. Geralmente, o indivíduo não percebe até quando estiver totalmente esgotado, com alto grau de doenças (como ansiedade e depressão severas) e quando já está abrindo espaço para o surgimento de doenças oportunistas, como infecções urinárias, no caso das mulheres, e de vias aéreas, no caso dos homens. Isso porque o burnout é uma síndrome percebida pelo cérebro, e uma das maneiras neurológicas de combatê-lo é liberando hormônios ligados ao estresse, como adrenalina e cortisol. Infelizmente, a liberação principalmente do cortisol em níveis elevados debilita o sistema imunológico [de defesa] do nosso corpo. Em seguida, a saúde dessa pessoa vai sendo abalada gradualmente. Podem surgir até doenças graves, como aumento da chance de derrame, alta do colesterol mal, surgimento de doenças da pele — como dermatites —, de doenças gastrointestinais e até o aumento da probabilidade do aparecimento de tumores. Em casos extremos — infelizmente há muitos —, leva ao suicídio. É claro que se deve levar em conta uma predisposição da pessoa em relação à essas doenças. Mas, o desenvolvimento do burnout envolve, como disse antes, frustrações profissionais, pressão de gestores por resultados que devam ser alcançados a todo custo, turno de trabalhos que não respeitam as capacidades humanas, entre outros fatores.
Podemos dizer então que o surgimento do burnout dentro das empresas é culpa de chefes ruins? É consequência de uma má gestão?
Sim. Em todos os casos que um funcionário apresenta burnout, vemos — em menor ou maior grau — que o aparelho de gestão a que ele está submetido está contaminado. O papel do gestor é fundamental nisso, na hora de estabelecer metas inalcançáveis, de pressionar por resultados, de não reconhecer o trabalho da equipe. Tudo isso cria um ambiente ruim, propício ao burnout. Mas algo para se notar é que, muitas vezes, o gestor direto não é algoz, mas é também vítima. É cobrado desta forma por seus superiores e repassa a cobrança a seus funcionários. É um ciclo, percebe? Infelizmente, nós temos muitas empresas que operam no paradigma do medo, dos resultados a todo custo, e acabam provocando um ambiente propício para a síndrome. A boa notícia é que, apesar de ter demorado muito tempo, as pessoas estão acordando para o problema. As empresas estão entendendo que você não consegue ter produtividade com qualidade em um ambiente que está contaminado, doente e envenenado pela questão da ambição. Estão entendendo que, antes de sermos funcionários, somos humanos.
“As empresas estão entendendo que, antes de sermos funcionários, somos humanos”
O VP de uma grande empresa brasileira disse recentemente que buscava mudar uma mentalidade que imperava dentro da organização: “o CEO achava bonito que as pessoas estivessem estressadas”. As empresas estão de fato buscando mudar essa mentalidade?
Demorou, mas os gestores e CEOs perceberam que não adiantava ter uma empresa com esse tipo de cultura, mas que “perdia” metade de seus funcionários por faltas ou por licença devido depressão ou transtorno de ansiedade generalizado. Posso te afirmar que a era desses gestores que pensavam que “funcionário bom é funcionário estressado” ou que “funcionário sem estresse não vestiu a camisa” está acabando. É uma tendência não só no Brasil, mas no mundo.
Você vivenciou um exemplo dessa mudança?
Em uma das consultorias que fiz, conheci um CEO que transmitia essa cultura do medo, da retaliação, de que as pessoas deveriam trabalhar sempre no paradigma do esforço máximo, que cansaço era algo nobre e que sofrimento polia a alma. Ele dizia que estresse era frescura e coisa de gente fraca. Isso tudo era algo tóxico, que ia descendo pelos extratos da instituição. Você via que até o VP sofria de burnout. Era uma empresa que tinha índice de retrabalho gigantesco e taxa de absenteísmo monstruosa. Para mudar isso, o CEO precisou fazer um intenso trabalho de coach para notar que a proposta de cultura dele trazia prejuízo aos gestores e à empresa como um todo. E mudou a cultura. O nível de absenteísmo que era de 23% para 3 mil funcionários caiu para menos de 5%. Vimos que, quando começamos a melhorar qualidade de vida no trabalho, automaticamente melhorou também a qualidade de vida pessoal, nas relações interpessoais, na vida social. Algumas das pessoas que se recuperaram tiveram coragem de dar outro passo e até pedir demissão. Quando tiramos essa pessoa do burnout, ela readquire autoestima e confiança.
Independentemente do ambiente de trabalho, há aquelas pessoas que depositam todas suas expectativas de vida no trabalho, que condicionam sua felicidade às conquistas profissionais. Elas também podem chegar ao estado de burnout?
Sim. As pessoas acham que é só ambiente que causa burnout, mas não. Às vezes, a pessoa está em um momento de grande expectativa com relação ao emprego, à colocação dela, que acaba entregando-se ao trabalho e esquecendo de sua vida. Geralmente pessoas mais ansiosas e imediatistas são mais suscetíveis a isso. Porque, geralmente, querem que os resultados apareçam de maneira rápida. E aí, eles demoram a acontecer ou não acontecem e ela, que se entregou ao trabalho achando que aquilo podia ser solução de todos os problemas da vida, acaba desenvolvendo a síndrome. Dentro do contexto profissional ainda existem pessoas que, ao entrarem em burnout, podem até contaminar os colegas. São pessoas que tem comportamento pessimista e vitimista. A única coisa que querem é falar mal da empresa, da instituição, que dizem padecer da falta de reconhecimento sempre.
Como esse diagnóstico funciona? Há planos de prevenção?
A primeira coisa que se fala em termos de diagnóstico é a conversa. É o diálogo com o gestor, com os funcionários, conduzidos de maneira individual ou coletiva, com metodologias próprias de avaliação. Além disso, hoje em dia, já temos ferramentas para usar em questionários de avaliação do burnout e detectar aqueles subtipos clínicos (“frenético”, “sem desafios” e “desgastado”). Uma vez feito diagnóstico, é hora de elaborar estratégias em comunhão com as questões das empresas. As estratégias envolvem desde psicoterapia em grupo até aplicações de programas de qualidade de vida como meditação, atenção plena, aplicação de recursos do mindfulness, práticas de ioga, exercícios de respiração e consciência corporal. Tudo isso ajuda as pessoas a perceberem que o estado de burnout não é o normal dela. E a conseguirem sair dele.
O que você acha que os colegas e chefes podem fazer para ajudar uma pessoa diagnosticada com burnout?
Não é simplesmente estender a mão e tirar a pessoa do buraco. É estender, tirar a pessoa do buraco e demonstrar que gestor e empresa estão comprometidos para que o burnout não volte a instalar dentro do sistema colaborativo. O primeiro e mais simples passo é o diálogo. Mas um diálogo que gere uma escuta atenta e ativa. É a questão de acolhimento. Ouvir as demandas do colega, suas frustrações, entender o motivo dele se sentir injustiçado. É criar um ambiente onde ele não se sinta pressionado a abrir suas sensações e ser punido por elas.
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